"Não se trata de uma mera síntese, nem de uma negação usual, mas de buscar compreender os limites da poeira conceitual que paira no senso comum".
Drª. Geovânia Nunes de Carvalho
Neste capítulo, Harari se apoia em argumentos históricos para montar um possível conceito sobre “informação”. O intento desta aventura conceitual é margeado pela noção de informação ingênua e seus danos obnubilantes acerca do que, possivelmente, possa ser nomeado de informação. Dificuldade revelada pela Física e Biologia com reverberação no pensamento complexo moriniano, a informação não é apenas um elemento da vida, mas o centro da vida e da vida da ciência.
Harari adverte ao leitor que seu esforço visualiza a função da informação no percurso histórico. Ou seja, a aspiração é hercúlea, pois é preciso, por vezes, usar do recurso da negação para afirmar. Não se trata de uma mera síntese, nem de uma negação usual, mas de buscar compreender os limites da poeira conceitual que paira no senso comum. Sendo histórica, a informação se refere ao contexto, tem datação, origem, alcances e limites: é preciso fazer uma espécie de separação entre o joio e o trigo.
Desse modo, as figuras simbólicas conferidas no texto bíblico, nas galáxias, nos poemas, as gravuras das cavernas, os códigos de guerra e de paz, as mensagens dos canais analógicos e digitais recebem o carimbo de informação. Dessa forma, o relato um tanto duvidoso sobre a proeza do pombo Cher Ami confirma a tese de McLuhan, de que o meio é mensagem.
Mas, por ser um fenômeno histórico, como nos alerta Harari, em que medida essas simbologias são, de fato, informações? Se existe um jogo de interesses no qual as peças são fenômenos objetivos e subjetivos, portanto flutuantes, como o conceito poderá ser erguido?
A informação, explica o autor, é contornada por uma multiplicidade de visões forjadas em contextos temporais, culturais, religiosos, educacionais, políticos e geográficos. Assim, a possibilidade conceitual universal é diluída entre os oponentes, podendo ou não receber o nome de informação. Tudo é informação ou não! (p. 33, 2024).
Seguindo o procedimento metodológico da negação, Harari desconstrói a tese da noção ingênua de que existe uma relação umbilical entre informação, verdade e a representação da realidade. Sendo o real algo exterior (a nós), a informação é o elemento que representa a exterioridade e, quando consegue atingir o real, próximo à totalidade, a noção ingênua anuncia conhecer sua verdade. Entretanto, Harari não nega que a verdade seja uma representação rigorosa sobre o real, mas, observa que sua constituição abriga várias camadas, sendo impossível uma verdade ou um conhecimento universal e total.
Tema de envergadura filosófica, - o real - a realidade é um fenômeno que escapa de uma metodologia universalizante, portanto, de uma categorização também universal. A totalidade e a verdade do real é sempre algo inacessível, confirmam Adorno e Edgar Morin. Seria, então, legítimo dizer que não podemos nos referir ao real como uma referência “verdadeira” para a vida? Toda informação sobre o real é algo sob suspeita?
A resposta é não. A posição de Harari reside na negação da implicação formal entre informação e verdade, sendo a verdade a representação da realidade concebida como um fenômeno único e estável, submetido à lógica tradicional universal e totalizante. Por esta via, a noção ingênua de informação reduz e invisibiliza as camadas do real, tratando a tríade informação, verdade e realidade como fatos indissociáveis e consequentes.
A argumentação de Harari está consoante com as descobertas dos físicos Ilya Prigogine e Basarab Nicolescu sobre os níveis de realidade que mais tarde serão incorporados à epistemologia complexa moriniana, em especial no princípio da transdisciplinaridade, ponto de inflexão para a revisão da lógica clássica. O real, dizem os filósofos e físicos, em consonância com Adorno e Morin, é uma sobreposição de camadas emergentes que explodem no devir histórico. Qualquer tentativa de manipulação para representá-lo incide numa patologia da razão, ou, em outros termos, numa violência epistêmica.
Harari exemplifica essa questão dizendo que a informação está restrita a um aspecto do real e não às suas múltiplas camadas (invisibilizadas). Eis o que nos apresenta o autor acerca do conflito em Gaza: os 10 mil soldados são apenas um dado numérico geral, redutor das nuances, das camadas margeadas constituidoras do conjunto de soldados. A noção ingênua considera, apenas, o dado aparente que não representa uma suposta verdade sobre as identidades dos 10 mil soldados. Por isso, para Adorno, a totalidade é uma não verdade que, expressa na violência de inibir a complexidade do real, ainda mais o evidencia. É como se a complexidade vazasse pelas frestas da redução e simplificação sobre o real constrangido.
Ademais, a informação traz a marca da objetividade e da subjetividade: uma vez que é incontestável a informação de 10 mil soldados - um dado objetivo - é questionável os critérios subjetivos (política, crenças, sentimentos, cultura, desejos e pulsões) que omitiram suas identidades e condições de existência no campo de batalha. Tal cenário conflitante reflete a possibilidade de que os dados gerais representem ou omitem critérios de “verdade” e de falsidade sobre o insumo e o conteúdo da informação. Esclarece nosso autor: ainda que a verdade sobre o real não seja totalmente verídica, é certo que algumas representações sejam mais confiáveis que outras.
Na mesma direção, faço um desvio me reportando aos comentários do Prof. Schneider (2020) acerca de sua leitura de Kai-Fu Lee, cientista da computação, empresário e escritor, no livro Inteligência Artificial- como os robôs estão mudando o mundo, a forma como amamos, nos relacionamos, trabalhamos e vivemos (2019). Nas palavras do Professor, o cientista apresenta uma informação - um cliente de um banco teve a sua solicitação de empréstimo negada, devido à correlação (padrão) feita pela IA entre pessoas que não carregam de energia os seus smartphones e pessoas que não cumprem suas obrigações financeiras - que percebo um encaixe nas análises da noção ingênua. A questão em tela é a informação de que todo mau pagador raramente carrega a bateria do celular. Segue-se que dado essa informação (somadas a tantas outras), sua solicitação de empréstimo numa empresa de crédito, será negada por um agente inteligente - IA - ou pelo gerente, respaldado pela nova informação. Entretanto, o mau pagador é aquele que não paga ou atrasa o pagamento com frequência, independente de carregar ou não o celular. Essa informação anexa aponta para a característica da noção ingênua em desenvolver novas redes de informação descoladas com a realidade próxima da verdade.
É o caso da noção ingênua oferecer o antídoto para a “informação errônea” e a “desinformação”. Para “corrigir” essa falha, a noção ingênua oferece mais informação, acreditando que o oceano informativo possibilitará uma via autocorretiva dos erros e da desinformação. Entretanto, essa atitude cria o estado infodêmico, um pantagruelismo insaciável, ininterrupto e espiralado de mais informação sem nenhuma ou pouca relação direta com a verdade.
Antes, diz Harari, essa atitude cria múltiplos nexos com outras redes e novas redes de informação descoladas da representação da verdade, embora, existam casos em que se tem a aproximação com o real, mas essa não é função exclusiva da informação, que é criar e conectar redes. Isto porque, diz Harari, mentiras, ficções, fantasias são informações.
Cabe ressaltar os argumentos do autor acerca desse tema: ao conectar e criar novas redes informativas, a informação põe as coisas em “formação” (p. 39, 2024). Ou seja, a informação agrupa coisas diferentes para reunir num bloco uniforme, criando o sentimento de representação verdadeira de uma “nova realidade”. Formação, no sentido de organização - ordem - união, unidade, sincronização, identificação da rede em rede infotécnica.
Os exemplos dessa mobilização formativa vão desde elementos da astrologia, até os símbolos patrióticos que põem os soldados em marcha e identificam as bolhas de movimentos nacionalistas. Reporto-me aos discursos do recém empossado presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciando a “limpeza” (eugenia) da invasão migratória, especialmente dos latinos e mexicanos, para devolver a “América” aos americanos. Em tom agressivo, Trump cometeu um equívoco interpretativo de alcance histórico e político sobre o discurso de James Monroe, em 1823, que entrou para a história como a doutrina de Monroe ; no mesmo sentido de formação, a mobilização (organização, unidade, marcha) cito o movimento em rede do ressurgimento do verde amarelismo da bandeira brasileira para os extremismos da direita ultraconservadora na disputa da campanha eleitoral entre Lula e Bolsonaro. Em sentido oposto as novas redes também são capazes de mobilizar campanhas de fraternidade, a exemplo dos médicos voluntários, ajuda nos desastres climáticos e de situação de guerra.
Os argumentos do autor se dirigem para os caminhos da noção ingênua, em insistir na crença da representação do real e da capacidade de elaborar verdades em rede. Interessante observar que nem sempre uma rede traz esse objetivo predeterminado, (p. 41) como é o caso das redes de conexões tanto de células, quanto de uma peça musical que conecta milhões de pessoas em diferentes lugares e tempo.
A conclusão do autor sobre a noção ingênua da informação, se dirige no sentido de arrematar os argumentos e fatos discorridos ao longo do capítulo. Elenco seis pontos correlacionados:
- Caracterização da informação como um elemento fundamental para criar conexão entre redes existentes
- Criação de novas redes
- Incapacidade da representação correta ou errônea sobre a realidade e uma suposta verdade sobre o mundo
- Se, num dado contexto, a informação representa parcelas da realidade e da verdade, isso é um fato secundário
- A crítica da noção ingênua não nos autoriza a negar a noção de verdade
- Negação da relação implicada e necessária entre a rede de informação e a representação do real e de sua verdade.
Por isso, conclui Harari, o erro, além dos acima expostos da noção ingênua, é acreditar que a criação de mais tecnologia e de uma tecnologia poderosa, aqui pensemos na IA, não resultará, obrigatoriamente, na formulação verdadeira que mais se aproxime do real, das relações e dos conflitos multidimensionais da humanidade.
Harari faz um apelo quanto à necessidade de buscar meios para a elaboração da verdade e da conectividade saudável (politizada, crítica, solidária) entre os indivíduos frente à infodemia, caracterizada por uma avalanche de mentiras, fantasias, ilusões, patologias e erros, cada vez mais veloz e espiralada que caracterizam o século XXI.
Essa observação finalística nos remete ao tema do próximo capítulo, quando será discutida o fenômeno da “estória” com “e”. O que isto representa?
Até lá, pensemos na condição sapiens enquanto produtores, consumidores e disseminadores de informação no devir histórico da aventura humana em busca de conectividade e em nome da verdade e do conhecimento.
REFERÊNCIAS
HARARI Nexus: Uma breve história das redes de informação, da Idade da Pedra à inteligência artificial. Tradução: Berilo Vargas e Denise Bottmann. Companhia das letras: (2024).
LEE, Kai-Fu. Inteligência Artificial - como os robôs estão mudando o mundo, a forma como amamos, nos relacionamos, trabalhamos e vivemos. Tradução: Marcelo Barbão. Editora Globo Livros: (2019)
SCHNEIDER,N. Henrique. O fenômeno "China" na Inteligência Artificial - Parte 2 https://www.ufs.br/conteudo/65333-o-fenomeno-china-na-inteligencia-artificial-parte-2
Drª. Geovânia Nunes de Carvalho é Pedagoga-CECH/UFS e membro do GEPIED/CNPq/UFS